quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Àgua por cima, formiga por baixo...





A chuva cai lá fora; não é motivo de esmorecimento, ainda que fosse tormenta; a  lenha a crepitar no fogão traz calor e viço. Dásia frita peixes que Herculano e eu pescamos no dia anterior. Busco um limão no pé dos fundos, correndo debaixo da chuva que tira sarro de mim.
 
Comemos alegres, rindo e lendo as recomendações coladas na janela, entre causos de pessoas simples que chamam filtro de firto e de Rita, que quebra todos os cabos de ferramentas - pás, enxadas e tudo que tenha cabo. As risadas espantam a chuva e quando as gotas ficam menores, saímos para pegar as mangas recém-caídas de altos galhos; as palmas estão tão belas que não resistimos e as mutilamos no intuito de trazer a beleza para dentro de casa; as uvas da parreira estão verdes e nos frustram. Formigas sobem pelo corpo, tira-se a roupa para acabar com a correição*. Dio, vendo a irmã de calçola a matar as formigas pelo corpo, grita: “_É a visão do inferno!” Rimos às pampas, e ainda mais quando retruco: “_Tem uma na sua bunda!”
 
Deixamos as uvas pra lá, estão verdes mesmo, já diria a raposa. Ao contrário das lichias, saborosas em sua sensualidade rósea. A água das folhas nos banha, mas a ganância pela fruta é grande ao descobrir o sabor da fruta no pé e comer ali mesmo. Os pêssegos de igual modo; o problema em colher pêssegos é que se colhe um e comem-se dois. Até o Zi, que não gosta nem de àgua nem de lama nos acompanha e  se atira a frutaiada com gosto... 
 
Com a chuva, a cacimba está cheia, a água meio barrenta e não bebemos por isso. Limpamos folhas da bica que forma-se ao final do canal que transborda encharcando o caminho. Acima da nascente, o cruzeiro nos espera paciente para mais uma prece, mais um agradecimento, mais um pedido...
 
Retornamos contentes, o fogo ainda está aceso e um café fresquinho é produzido enquanto trocamos as roupas molhadas, tiramos os carrapichos e o picão das que trajávamos. Tio Onofre, o vaqueiro de dentes perfeitos em seus quase noventa anos,  chega contando causos de benzeção e livramentos; o céu diante de tanta alegria recolhe suas nuvens e já não há vestígios de mau humor. Ê vidão!!!


*Correiçãodesignação comum a inúmeras espécies de formigas carnívoras. 

 Foto: Dionísio Pedro da Silveira - Casa da roça - Sítio de Dionísio

8 comentários:

  1. mais um: talvez eu mudasse o título para Palmas mutiladas e formigas assanhadas...

    ResponderExcluir
  2. Momentos raros e rarefeitos de pura felicidade, tal e qual um retratinho antigo encontrado no meio de um livro e que nos faz perder o real por um momento e viver o mágico. Me lembrou o mundo mundo vasto mundo, nem me chamo Raimundo e não há rima e nem solução para o real e agora... mas que eu queria estar lá naquele momento, isso eu queria.

    ResponderExcluir
  3. momentos no interior que coisa boa, lembro de algumas passagens no sul de minas quando juntos com os primos molhavamos os pés em um riacho comida no fogão de lenha... "coisa boa di mais di boa sô"

    ResponderExcluir
  4. Ê vidão mesmo, hein! Que bacana e que inveja (inveja boa, sempre). Tirando o lance das formigas carnívoras, pois já me deu arrepios só de ler, fiquei com água na boca da frutaiada, rs
    bjs

    ResponderExcluir
  5. Lindo! Você faz uma prosa perfeitamente poética. Coisa linda, literatura pura. Lembro-me de Adélia Prado, minha poeta preferida.
    Dionísio

    ResponderExcluir
  6. Lindo!!! Viajei p/ lá enqto lia...

    ResponderExcluir
  7. Muito bonito. Gostoso de ler. Acaba a leitura, mas o pensamento fica preso ao que foi narrado. Luiz Otávio Pereira (Belo Horizonte)

    ResponderExcluir

Será muito bom saber que você leu, e o que achou.
Deixe aqui seu comentário