quinta-feira, 27 de março de 2014

O escritor



Ainda está vivo e continua sendo um escritor de renome. Sim, laureado, respeitado, cultuado, famoso; e a quem eu muito admirava.
Coube a mim, àquela época, ainda não formado, auxiliar de biblioteca, ainda jovem, mas que respondia por toda parte de referência, a incumbência de atendê-lo em sua pesquisa, para dar-lhe fundamentação teórica para a série de textos que ele iria escrever sob encomenda, para uma renomada revista. O projeto levaria alguns meses e eu animado por tê-lo ali, quem sabe solicitar dedicatória em alguns de seus livros, trocar algumas palavras, ou até mesmo ideias com o como se diz: “monstro sagrado”.
Apreensivo com sua presença dantes anunciada, dia e horário marcados, a primeira das muitas visitas, pois afinal as matérias encomendadas a ele e a quantidade de pesquisas eram trabalho para meio ano. E lá estava eu, alegre, orgulhoso, cheio de ansiedade, aguardando o momento de conhecê-lo.
Chegou, pormenorizou com poucas palavras o que necessitava, demonstrando ali todo seu poder de síntese. Carrancudo... Decerto sentia alguma dor, afinal, a idade a traz com frequência e essa é causa frequente para os maus bofes que por vezes acompanham e justificam a falta de educação e cordialidade.
Depois, apresentou a moça, de beleza comum, simpática na total medida do esforço para sê-lo. E afirmou que seria ela que viria, ele não tem tempo para isso, “of course”!  E assim foi embora. Sem aperto de mão, sem sorriso, sem agradecimento; ele era um deus, não precisava fazer esforços de simpatias ou concessões, ser agradável era desnecessário.
 A moça ficou. Como eu, um tanto sem  graça, e assim continuou nas visitas semanais por meses que não sei precisar quantos. Trouxe-me uma vez um pão de mel, à guisa de agrado. O sorriso não curvava linhas no rosto, não alteava suas maçãs nem lhe diminuía o tamanho dos olhos ou alterava as sobrancelhas.
O escritor? Nunca mais voltou. Afinal, tinha ido ali apenas para assegurar-se que sua empregada teria a atenção necessária, sob as bênçãos de sua luz, no tipo de preconceito que ocorre a uns “grandes”, que acham que apenas eles teriam o merecimento da atenção e bom atendimento, como se o “ofício” da biblioteca não fosse um servir prazeroso e interessado ao usuário e à sua pesquisa, onde o orgulho não estivesse no apresentar, a quem busca, toda a informação disponível e necessária a seus anseios.
Tomei ranço e passei anos sem lê-lo. Mesmo hoje, quando leio seu texto semanal no diário de grande circulação, penso onde estaria aquela cordialidade, alegria e simpatia dos textos? Tudo bem... Ficção... Ainda assim por vezes me parece um tanto embaçado. Para alguns tipos de catarata não existe cirurgia ou tratamento.


Foto: Djair - Biblioteca municipal em Alegre - ES. 
(Que nada tem a ver com o local onde se passa o "causo")



quarta-feira, 19 de março de 2014

A flor do lótus



            E naqueles dias alegres em Florianópolis Felipe foi um dos que contribuiu para boas e grandes risadas, no estúdio de tatuagem de meus sobrinhos ele faz obras de arte nas peles bronzeadas ou nem tantos que vem enfeitar-se a espera do verão.
            Tatuador renomado e conhecido na região, afagando o próprio ego, aquele mesmo que todos nós massageamos vez em quando, falava sobre suas habilidades e assim o papo fluía quando ele vangloriando-se da fama na ilha solta a pérola:
_ Eu sou o chafariz da loja...
É, era pra ser chafariz... Enfim, um lapso...
E ai, eis que chega um rapaz para ser tatuado, e papo vai, papo vem, papo fica, papo estica... O rapaz revela ser gaúcho.
Sem titubear Felipe grita a Erlanderson: _Ah, o cara é teu contemporâneo!
Conversamos sobre uma possível, porém improvável tatuagem que eu viria a fazer, digo que não há nada que eu goste tanto assim a ponto de fazer o carimbo no corpo, e se fizesse teria que ter algum significado... Quem sabe uma flor de Lótus pela sua representação, e assim explico: Por ter suas raízes fixadas em meio à lama e ao lodo, na parte pútrida onde se decompõem matérias orgânicas, o lótus floresce na superfície beleza ímpar. Assim sua simbologia é que você pode estar no ambiente mais degradado, mais inauspicioso e ainda assim manter sua pureza...
Noite de sexta, música para relaxar, churrasco para beliscar, cerveja para refrescar, narguilé para descontrair... E assim risadas inundam a varanda, confirmação sonora da alegria presente.
Na cozinha chego a Jana, que preparava algum outro quitute, e que não estava no estúdio á tarde quando do dialogo acima explicitado : _Jana, pergunte ao Felipe qual o significado da flor de lótus.
Passam-se alguns instantes e Jana:
_Felipe... Qual o significado da flor de lótus?
E ele sem titubear e abrindo um sorriso responde de um só folego: _Rá!!! Teu tio já me ensinou... Significa que você pode estar na merda... Mas a flor nasce!!!

Foto: Felipe Passos - Flor do lótus - Tatuagem (cobertura).