sábado, 26 de abril de 2014

Orelhas... Nem todas são de Eurídice.

     Depois de uma cirurgia de timpanoplastia (reconstituição do tímpano o enxerto de pele – uma segunda camada de pele, retirada de trás da orelha), fiquei a pensar sobre o ouvido/orelha. Vieram-me lembranças infantis, provas de que ele nunca funcionou muito bem mesmo, coisas que ouvia e entendia errado: uma palavra, o sentido de uma frase...

      Lembrei-me de Sr. Turiba, que era dono de metade das casas da rua onde morei dos oito aos doze anos. Usava um aparelho para surdez, àquele tempo enorme e indiscreto, possivelmente não tão eficaz quanto os de hoje; pelo aparelho sua fama, que não era apenas fama, mas fato: era surdo. Os meninos da rua chamavam-no de “seu Turiba – muchiba”.

     Lá pelos 14 anos, uma vez em que brincava com meus primos, juntando munição para atirar uns contra os outros, lançávamos caroços de feijões soprados por talos de folhas de mamoeiro e, não sei porque, tive a “brilhante” ideia de colocar um dos feijões dentro do ouvido... E ele ali, bem aconchegado, foi entrando duto adentro... Resumo da ópera infantil: minha mãe teve que levar-me ao pronto socorro para que o retirassem. A operação não durou mais que dois ou três minutos, nada como experiência e equipamentos nas mãos certas. Não olvido o comentário dos atendentes sobre aquele que seria o terceiro caso envolvendo ouvido só naquele dia... Não, não sei detalhes sobre os outros dois, mas foi o suficiente para fazer crer que ouvidos geram se não contusões, pelo menos confusões...

    E pra não esquecer Van Gogh, depois da cirurgia, as talas aplicadas em volta do meu ouvido tomaram a cabeça toda, encobrindo a orelha e me fazendo lembrá-lo. Pronto! Citado Van Gogh, deixemo-lo em paz e passemos ao Cazuza com sua “A orelha de Eurídice”. A música que tem um incrível solo de violinos traz o seguinte trecho: “Traz uma orelha envolta num pano vermelho. É a prova: meu amor me espera sem uma orelha.” Na época em que eu assinava a “Bizz”, revista de música, uma delas trazia uma reportagem sobre o cantor, na qual ele dizia ter praticamente psicografado a letra depois de um sonho: fazer letras eram coisas difíceis para ele, pois levava mais de uma semana em uma composição. Tendo dado essa letra a outro músico para musicá-la, a recebeu de volta... Era Renato Russo o músico em questão, que a devolvia dizendo não ter conseguido, que era complicada... Salvo erro, foi assim a história; afinal a li há mais de 20 anos. Mas continuando, Cazuza disse que saiu berrando pela casa: “_Orelha, orelha, orelha... orelha rima com o quê? Com pentelho!!!” E aí foi ele mesmo fazer a música... Dizia que a ideia da orelha era referência a antigos modus operandi de sequestradores que enviavam à família a orelha de suas vítimas...

      Bem, quem quiser e puder, consulte nas Bizz dos anos 1980/90 e vá ler a reportagem completa.

      Minha mãe desconhecendo que narizes e orelhas crescem até o fim de nossas vidas atribuía o tamanho a orelha ao tempo de vida que se teria e dizia que meu pai viveria muito mais que ela, uma vez que possuía orelhas grandes, e D. Felina, minha avó paterna vivera até quase aos 90 anos e tinha orelhas enormes. Não se concretizou, ele já partiu e suas orelhas devem ter sido apetitosas aos seres da terra.

    Sem orelhas os narizes não seriam tão eficientes em segurar os óculos. E a indústria de jóias perderia toda a clientela dos brincos. E, claro, já teríamos nos acostumado a nossas estranhas caras sem os apêndices laterais, mas imaginar isso tendo-os é um tanto estranho.

      Orelha, orelha..

      A maioria das informações que recebemos entra-nos por elas... Talvez por isso as abas dos livros, que nos trazem informações sobre as obras e sobre seus autores, também optamos por chamá-las: orelhas.

      Nunca ouvi ninguém dizer a mim ou a outrem: “_Você tem as mais belas orelhas que já vi!” E se ninguém disse, ninguém escutou... mesmo tendo ouvidos.

      E antes que eu ouça um pito, vou voltar ao repouso, que é o recomendado a meu ouvido!


Foto: Djair - A própria orelha, enquanto o  texto era escrito.
Áudio:YouTube - A Orelha de Eurídice - Cazuza

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Monga, a mulher gorila

      Os anos 1970 já iam pela metade naquele Melo Viana, bairro de Coronel Fabriciano. Tínhamos uma Minas pacata, à exceção dos dias de jogos de Atlético e Cruzeiro, aí então era dia de algazarra de buzinas e carreatas que se revezavam ora com bandeiras listrada de preto e branco, as minhas preferidas, ora de bandeiras azuis com suas estrelas brancas... Pois bem, estava no segundo ou terceiro ano primário, lá no Padre Deolindo Coelho, e já tinha então um certo cangote grosso, conforme dizia meu pai, o que me permitiu ver o entretenimento que por aqueles dias se dava ali, na esquina mesmo da Dr. Euzébio de Brito com a avenida cujo nome se apagou da memória e cuja preguiça me impede de abrir o google (a panaceia para esquecimentos e falta de conhecimentos), a bem de que não irá alterar o curso da prosa.

      Neste citado terreno da esquina, onde não existiam muros e os pés de mamona floresciam ao lado do riacho ainda não canalizado, e onde depois se construiu o Escritório de Contabilidade de D. Aparecida e o consultório odontológico de seu marido, Joaquim Gomes Alvernaz, por aquela época vereador, tendo se candidato também a prefeito logo em seguida. Mas essas são outras estórias, portanto, voltemos ao terreno ainda semivirgem... Foi nele que veio instalar-se a tenda da Monga, a mulher gorila.

      Em polvorosa, toda a gurizada ficou louca para ver, saber, sentir a experiência; o tempo já me tirou os sons e as cores referentes ao que comentávamos e as impressões dos mais velhos que já tinham ido ver. Ora, molecotes como nós, os pequenos, só podíamos ir acompanhados de um adulto, e assim manhosos implorávamos aos pais para nos levarem.

      À noite, a brincar de esconde-esconde e outros piques, na rua, praticamente sem carros, onde éramos livres, espreitávamos querendo achar frestas e botando reparo na cara das pessoas que entravam e nas das que saíam.

      E meu pai, a me fazer gosto, levou-me lá em uma dessas noites. Não lembro de ter outro menino da aula, nem colega de colégio, lembro apenas dele, meu pai, de camisa branca, de manga comprida, calça preta, os cabelos com seus pega-moças, como ele chamava masculinizando o nome dos cachos que lhe formavam pontos de interrogações, de ponta cabeça, à testa.

      Chegada a hora, uma loura, não podia ser diferente, cabelo preso num rabo de cavalo, encorpada, num tempo em que curvas eram sinônimo de beleza (e não a magreza anoréxica destes dias), biquíni de vários tons de brilho onde o verde se destacava, e eis que de repente, como diria o poeta, não mais que de repente, salão escuro, todos em pé, pois o espetáculo era curto e não carecia de sentar, as únicas luzes voltadas para a moça, que começa a ter o corpo coberto por pelos escuros, lentamente, mas não tanto que se perceba os truques de espelho, até se transformar em... Monga, a mulher macaco!

      A bela transformada em fera, um gorila, enorme, para meus olhos infantis. Lembro que encostei-me mais a meu pai, juntando o corpo a suas pernas; ele colocou a mão em meu ombro, dando-me segurança, afastando o medo. Ele estava ali, logo, eu estava protegido, e depois do susto, um sustinho.

      A Monga, balançando as grades, tenta fugir ao cativeiro. O apresentador pede calma, “atenção, não emitam sons para que ela não fique nervosa! Calma Monga, calma, lembre do que aconteceu em tal cidade – já não lembro qual era – onde você feriu 3 pessoas, calma....”. E aos poucos a Monga se tranquiliza, poderia dizer que lhe foi dada uma banana, mas isso já não sei se ocorreu ou sou eu que invento...

      E assim, diante da plateia, Monga, a mulher gorila, já serena, volta aos poucos a ser a blonde girl, de formas torneadas, dentro de seu biquíni de pedrarias.

      Em casa, a mãe esperava, que aquela programação não era para senhoras. Quer saber como foi e conto de olhos esbugalhados a experiência. Pergunta-me se fiquei com medo: “_Só um pouquinho, o pai tava lá!”


Foto: internet: http://www.mamajuana.com.br/monga-ganha-versao-inovadora-no-parque-guanabara/


sábado, 12 de abril de 2014

Dai de comer a quem tem fome II

E naqueles dias, Dalva saía da aula as 12:45, ia para casa, cansada, fazia comida e depois, um cochilo da tarde, pois para quem acordava às 06:00 da madrugada para estar no colégio às sete e trinta, o sono pesava, principalmente para quem apreciava os filmes da Sessão Coruja, sim, existia a hora da sessão coruja...
Vindo então àquela tarde, extenuada, moída de tanto fustigar o raciocínio na aula de física na qual Igor, o menino veneno que tirava suspiro das moças, bela beleza plástica e fazia as caspas virarem mandiopã devido ao esforço que se fazia na matéria. Em vão, as explicações pouco didáticas não entravam na cachola nem com reza nem com praga... Mas enfim, vinha ela cansada e pensando se ia direto dormir e depois comia, ou se comia algo e depois dormia, e nessa dúvida ouve D. Umbilina, a vizinha de três casas anteriores a sua.
_Dalva minha filha, vem cá, almoça aqui comigo, hoje sobrou um tanto de comida que ninguém dá conta.
D. Umbilina servia marmitas e na grande sala de sua casa improvisava um refeitório onde os comerciantes e demais trabalhadores da redondeza se revezavam no almoço, pagando menos que nos restaurantes daquela beirada de bairro e tinham comida de qualidade e saborosa.
Dalva não se fez de rogada: _Aceito sim D. Umbilina, a senhora não imagina o quanto eu fico grata... Nossa, eu ainda ia fazer, e tô tão cansada, nossa... A senhora é um anjo.
E Dalva mastigou, e Dalva engoliu, e Dalva comeu... Bom garfo, não enjeitava nada, se era pra comer era com ela mesma... E comeu que regalou-se. D. Umbilina solícita foi logo dizendo: _Ah, pera um pouquinho que tem um docinho de banana, fiz ontem você vai adorar. Saiu para buscar e foi logo gritando em direção a um dos quartos da casa, clamando a neta: _Ô Jovelina, Jovelina minha filha, levanta pra me ajudar com a louça... A pia tá até o teto. Eu não dou conta sozinha, não...
Dalva ficou já de orelha em pé, com a pulga atrás dela...
E D. Umbilina volta com o doce, não sem antes ao passar no corredor clamar de novo a pobre Jovelina: _Vem menina, bora me ajudar que essa vida de só comer e dormir não dá certo não.
Pôs o doce à frente de Dalva e foi lá sacudir a neta, que não respondia e nem aparecia. Voltou com uma xícara de café, mais doce que o doce que ela tinha acabado de servir, e começou a reclamar para Dalva...: _Olha Dalva, essa menina... não sei não... Tá vendo que não dou conta e não vem me ajudar...
E Dalva, compreendendo-lhe a jogada depois de tanta indireta, apenas reponde: _É D. Umbilina... Essa juventude é assim mesmo... Mas olha, eu já vou indo, que hoje eu tô com muito trabalho da escola... A sua comida tava mesmo uma delícia viu!? Precisando de mim é só chamar tá? Deus lhe pague... Meteu a alça da bolsa no ombro, os cadernos e livros debaixo do braço e picou a mula.
E assim, deixou para trás D. Umbilina a gritar: _Jovelina... Jovelina, minha filha... Os pratos...

Foto:  Djair - Farofa que acompanha o muzonguê - a ser feita por Verónica, em Lisboa - PT, e que nada tem a ver com o causo.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A escritora



                E era ela também escritora, de um renome menos consagrado que o do escritor ao qual falamos na semana passada; ganhadora de certo concurso literário, apressava-se quando parabenizada a frisar que o fato da premiação nada tinha a ver com sua amizade com um político, conhecidíssimo por ficar instalado anos a fio na cadeira do executivo e, depois, confortável também no espaldar nobre do corpo do júri, à sombra de sua fama acadêmica. Afinal, enquanto alguns ainda lhe chamassem pelo cargo ocupado no auge da vida acadêmica, outros insistiam em chamá-lo professor, especialmente aqueles que também tinham lida na academia. Embora, já há tempos ele não fosse nem uma coisa e nem outra.
    Bem, nossa personagem de hoje tinha também assento confortável sob a sombra do conselho da instituição que acolhia a biblioteca onde eu trabalhava, e do alto de seu trono me liga a fim de recomendar o filho de um amigo que viria fazer pesquisas para seu mestrado, doutorado, ou seja lá que título fosse (já faz mais de década e o tipo de monografia a ser escrita é irrelevante para o andar da narrativa que não se pretende julgada pela academia).
     Enfim, disse a ela os horários e dias de funcionamento da unidade de informação para que o mesmo pudesse vir para as pesquisas que fossem necessárias: nossa biblioteca estava sempre de portas abertas.
     Em contrapartida, ouço do outro lado a voz fina embaçada por tosses curtas: pois sim, ela sabia dias e horários, ligava apenas para recomendar o tal filho do amigo, a fim de que ele fosse muito bem atendido.
     Ofendido, mas não de todo resignado, apenas respondi que ali todos eram bem atendidos, fossem ou não amigos de membros do conselho.
           Assim encerramos nossa conversa.
O tal rapaz? Nunca apareceu naquela biblioteca.

Foto: Djair - Sombra projetada sobre a calçada - Batatais - SP, 2013.