quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Vitória

           "Vitória é uma prostituta finíssima. Ela aprecia o mar afagando seus pés e despreza muita gente que a rodeia e cobiça. Mas ela se deixa penetrar aos pouquinhos, de preferência os clientes com muito dinheiro."

Jair Leal Piantino


Mas a despeito do que nos diz o autor da quadrinha, temos o fato que visualizar o horizonte faz toda a diferença.

Foi hoje o primeiro banho de mar; não obstante o ventinho fresco que o oceano soprava em direção a meu peito, encarei o mar de frente, entrei... A água morna beijando meus pés acariciava os tornozelos, as pernas, massageando suas batatas num irrecusável convite que em nada lembrava o frio da água de outras praias, ou mesmo dela na tentativa anterior ainda sob tempo não muito seguro, e na ansiedade de quem vem de onde só há prédios e ruas, de onde não se dá noticia de horizontes e o cinza predomina...

Ao longe, a terceira ponte, um pouco antes do Convento da Penha que repousando sobre o rochedo desde 1530 abençoa essas terras. Ainda bem, pois perigava nos dias de hoje abrigar uma das centenas de miniaturas do redentor que se espalharam por essas terras brasilis. Ou pior ainda, um monumento ao mau gosto, como a esverdeada estátua da liberdade miniaturizada que me envergonhou ao passar por ela no contorno de Goiânia... Seria aquilo efeito do césio na mente de alguém?, e pronto, aí já tem o comentário preconceituoso para me acusar de tal.

Mas, voltando à paisagem que avistava da praia, ao lado de casa, aqui, Jardim Camburi, também via verdes remanescentes de serras de Mata Atlântica que teimam em salpicar a cor do jade, do musgo, da cana, aqui, ali e acolá, depois do mar, que hoje estava azulado.

Já se a vista vai para à direita prédios, mata do aeroporto, mas antes deles quilômetros de areia e mar num contorno bonito em degradê: a cor do mar, da areia, de coqueiros e chapéus de sol e outras vegetações que antecedem o calçadão, a ciclovia, onde capixabas e agregados como eu caminham, correm, andam de bicicleta, patins, skates ou simplesmente flanam aproveitando o calor, a brisa, a paisagem.

Olhando para o outro lado, ainda bem pouco explorado, o viaduto que conduz à mineradora e sob o qual, em linha reta, seguindo a ciclovia, vai dar em minha rua, um pouco antes do Jardim Botânico onde um enorme lago verde, restaurante de garças, Martíns pescadores e outras aves, vira depois um pequeno riacho que se junta à água do mar como se ali fosse preciso mais uma corzinha, toque nada sutil da paleta do pintor da tela que apenas por capricho quis por ali um outro tom de verde, só para mostrar como sabe mesclar e combinar as tintas. E depois dele, a sede da grande empresa, passada a iniciativa privada por um governo que não deixou saudades, e nem disse para onde foi o dinheiro apurado com a venda daquela que já foi a maior empresa do país. Num edifício grená entre a mata verde impõe sua presença aumentada com o apito do trem de minério, e pelo gigantismo dos navios ancorados em seu porto, que fazem fila no oceano, e assim voltamos de novo ao mar.

Atrás de mim areia, depois a escada onde se sobe ao calçadão, não sem antes parar para tomar a ducha para tirar o sal; subindo a escada, os botecos... Peixe frito, cerveja... Agora não, à boca da noite talvez, depois da caminhada vespertina...

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Dias de mudança

E aí vem a mudança provar-me o quanto sou apegado; um apego triste e enraizado que me tira o sono ao pensar nos pequenos objetos acumulados, recordações de viagens, as cerâmicas, as porcelanas, o artesanato em madeira e vidro...

Tantas vezes já mudei deixando tudo para trás! Mas também nunca fiquei tanto tempo em um mesmo lugar, e desta vez 18 anos... Quatro casas diferentes, a cada vez praticamente dobrava-se de tamanho, logo com muito mais espaço para acumular coisas; e tomem-lhe vasos e jardineiras que formaram uma mini-selva, com as flores que deram, o molde dos vegetais obedecendo as podas, os vasos ganhados, as cores, os matizes...

Os presentes, as pequenas lembranças, dados com carinho pelos amigos, recordações de uma vida... Uns em lugares de destaque, outros guardados para a próxima troca de móveis nos espaços quando se redescobre o objeto e o olhar sobre ele se renova, e aí então vem ele ao pódio enquanto se guarda outro para que dai a meses, um ano quem sabe, num novo giro da disposição mobiliária ele venha novamente emergindo do armário tomar seu lugar ao centro de uma cristaleira ou sobre o buffet...

As panelas de barro, as sopeiras e copos, todos usados, não são enfeite, são objetos de uso, onde cozinhei ou servi com carinho nos jantares, almoços, reuniões com gente querida. Têm sua própria história as taças que beijaram as bocas que sorviam um vinho, os lábios que lentamente deixavam vir boca a dentro um trago de cerveja, um gole de água... Pratos que testemunharam gulas, quadros que nas paredes, mudos, ouviram risadas e foram testemunhas discretas de inconfidências, inconsistências e claro, porque não?, maledicências.

O galinho de Barcelos que vem de Lisboa, o sino de vento de cerâmica do Piauí, o qual seu Verdou, o artesão de conversa frouxa e agradável já não pode mais fazer igual por ter batido a cacholeta já há tempos. A obra me inspira carinho por ele cada vez que a olho, relembrando-me de Ana, a esposa que a embalara flor por flor, com cuidado e carinho, e me traz preocupação com seu destino, quando na última visita, o marido já tendo partido, ela era a tristeza personificada ao atualizar-me sobre o falecimento.

Foto: Djair - Rodovia Fernão Dias
O banco de madeira feito por 'compadre' Herculano lá nas Minas Gerais, sob encomenda, e que assim como as floreiras de madeira viajou num carro que não tenho mais, também ele presenciou tantos casos e gargalhadas quando o fomos buscar com seu cada entalhe único, segredando os calos na mão do artista.

A namoradeira, assim como as bonecas de cerâmica do Jequitinhonha, tornam a casa mais mineira, uma comprada na primeira de tantas idas a S. João d'el Rey, onde um dia sonhei morar, e que se perpetua assim como a lembrança do pão de queijo recheado com pernil, comido numa padaria que não existe mais, junto com Dásia e o beato Zé Maria. As segundas, adquiridas em Diamantina, rumo à casa de Xica e que contrastam com as porcelanas de Sevilha, tornando única a combinação que traz o mobile de bonecas de pano da Paraíba e bichinhos de cerâmica que trouxe de Bonito – afinal o Mato Grosso, o do Sul, também está representado, e assim cada viagem se tornou tangível, se perpetua nas lembranças, que trouxe daqui, dali e de acolá.

Artefatos de palha dos índios do Pará, lembranças de José Luís, que também já partiu deixando saudades enormes de seu sorriso jocoso, assim como Rafael que me fez chorar o choro mais pungido dos últimos tempos quando se foi, e cujas taças já faz 08 anos que nos deu. Do mesmo modo, a biografia de Carmem Miranda – e aí vem a senda dos livros, os que li e amei, que grifei, e os que ainda não li, os catálogos de museus, de artistas, os livros com dedicatórias de amigos, de autores apreciados... As bonecas e panos de Africa que Tânia nos deu de lá, canecas de porcelanas e de cerâmicas dadas por Ana Bracht, por Claudia, copos de alumínio dados por minha mãe e nos quais Antônio e Elenice fazem questão de tomar água da talha quando vêm cá, a sopeira que foi da avó de Ricardina e tantos suvenires que é melhor parar de citar quem trouxe e de onde, antes que injustice alguém. Então que se sintam já citados e homenageados nas peças que serão sim guardadas com carinho, levadas junto comigo, ainda que por um tempo permaneçam nas caixas.

Como não ter apego se eles são a materialização de sentimentos, de lembranças, de vida? Sim, eu sou realmente uma pessoa apegada. Tanto e quanto que é hora de parar esse texto para não ir citando os Tsurus e outras dobraduras, e coisinhas e trocinhos e miniaturas outras e o texto não tenha fim e se torne ainda mais maçante, afinal a quem podem interessar minhas lembranças? Apenas me deixem dizer por fim que as pedras, tantas que são incontáveis, irão também, trazidas de todo canto, como as que Ana e Fran me trouxeram de Barcelona antes de eu a visitar, as que Jair me trouxe da praça Vermelha com medo de os russos cismarem com isso, como as que catei no Parnaíba, rio abaixo, rio arriba, ou me abaixei em Floripa para catar.