domingo, 24 de maio de 2015

Entre o céu e a terra

"Se você vier, pro que der e vier, comigo... Eu lhe prometo o sol, se hoje o sol sair. Ou a chuva, se a chuva cair..."
Geraldo Azevedo

E depois da troca de aeronave no Santos Dumont no Rio, finalmente seguia rumo a Teresina. Já sobre o Piauí, aquela tempestade imensa, onde os relâmpagos vistos de dentro das nuvens assustavam, a trilha sonora dos trovões fazia com que não se ouvisse respiração alguma, todos retesados nos encostos das poltronas, ninguém falava, alguns, provavelmente mais fiéis, talvez rezassem...
Nunca antes na história desse país, ops... Digo, nunca antes na vida eu pegara uma turbulência tão grande. Fora a chuva caía, com os flashes que refletidos nas próprias nuvens pareciam paparazis ao encontrar celebridades; dentro, luzes reduzidas, as comissárias (já que pela faixa etária avançada das tripulações, deixaram de usar o termo aeromoças, mas ao menos tiveram o bom senso de não usar termos anglicistas), sentadas em suas poltronas à porta da cabine – ali, na segunda fila de poltronas, sem vizinhos de assento, eu podia vê-las tão hirtas como as pessoas nas filas ao lado.
O pensamento me veio tranquilo: é agora? Se é esse o momento que a morte vem, estou pronto, pode chegar. Não vi a menininha que anuncia a morte em Guantanamera (filme dos cubanos Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío), nem parente já morto como via tia Belinha pouco antes de partir. Mas imaginei que a hora seria aquela.
Não foi, como bem devem ter observado, já que este texto não está a ser psicografado. Mas realmente eu me senti preparado para o encontro com a moça da foice, e apenas pensei: quero que meu último pensamento seja para Jair, esse companheiro de duas décadas. E então lhe dediquei os pensamentos que ele jamais saberia serem para ele, caso eu tivesse mesmo ido em direção à luz. E assim comecei a relembrar coisas vividas, o dia-a-dia. Afinal segundo algumas correntes hindus, sua alma é transportada para aquele lugar onde você estava a pensar na hora do passamento.
A área da turbulência passou e não foi desta vez que fui assumir meu cargo, de chefia e comissionado, no céu. Pousamos lentamente dando voltas sobre o rio Poti, a chuva caía sobre as suas águas barrentas, os telhados ocres das casas refletiam molhados as luzes dos postes, e eu estava vivo... Até quando não sei, mas sim: continuo pronto.


Foto: Djair - Céu do Brasil, possivelmente Goiás, pela janela do avião, dezembro de 2014.



quinta-feira, 14 de maio de 2015

Na falta de alfarrábios digitais

“Quando se instalou em Antares a primeira usina elétrica, Xisto Vacariano, sentado à cabeceira de sua mesa à hora do jantar, disse aos filhos: “(...) O avô de vocês vivia muito bem se alumiando com lâmpada de óleo de peixe e vela de sebo. A máquina mais complicada que ele conhecia era o monjolo. Para mim, lampião de querosene ou acetilene já é luxo demais. Ninguém me convence de mandar botar na minha casa a tal luz elétrica. Dizem que esse negócio dá choque, pode até matar uma pessoa.”
Érico Veríssimo em: Incidente em Antares.


A despeito da citação acima, de um dos livros que estou a ler por esses dias, este post nasceu a partir do comentário em uma postagem do amigo de “Belzonte”, Luiz Otávio. Na grande rede social da atualidade, postava ele a foto da página de um livro de poemas nacionais, herdado do pai... Não, o tema não é poema, e muito menos os dedicados à pátria, tão amarrotada nesses dias, mas sobre livros. Na contra-mão com Marco, lá na Alemanha, e na janela mais abaixo, onde a conversa flui em tempo real, falávamos, ele sobre sua paixão pela tecnologia, eu pela aversão a celulares e tais. Ele a paixão pelos I-Pad e eu pelos alfarrábios, seu cheiro, seu contato que me parece menos frio e mais romântico...
O comentário na postagem de Luiz Otávio foi este: “Serei sempre dos alfarrábios, são eles que me encantam com sua grafia já há muito adulterada, seus tipos de letra fora de uso, seu amarelado, quebradiços e de pequenos cortes, sua história pessoal além da que as letras contam, essas suas "rugas" sempre a me impressionar... Em que mãos estiveram, quem os folheou sem ler, e os que o leram, o que sentiram, o que acharam, a quem essas jóias pertenceram, em que momento foram deixados de lado...” 
 
E assim de fato é, a mesma paixão que Baratta, amigo de Sampa, tem pelos discos em vinil, o gosto talvez por uma época que não existe mais. Se o livro é meu, o grifo, faço anotações, e no caso de um de poesias do Leminski, chegava a escrever algumas ali também, e mesmo numa ousadia petulante, a completar e continuar versos... Se o livro é de biblioteca ou de amigos, as vezes me dá pena que não seja meu para poder grifar-lhe o que aqui e ali me agradou.
Até gosto quando o livro vem de um sebo e tem uma ou outra anotação ou grifo, mas no caso das bibliotecas abomino o procedimento. Como as pessoas podem confundir assim o público com o privado? Se o livro não é seu, não grife, não escreva, não dobre, não use a orelha como marca páginas.
Um dos que leio atualmente, a pessoa que o leu antes grifou as palavras que não conhecia; fico a imaginar quem seria, um estudante ginasial? Alguém que pouco leu? Afinal, palavras como “inveterado, impingiram, hirto e correligionários (sim, estou com o livro ao lado), entre outras, não são assim tão desconhecidas, acredito.
Um dos arrependimentos que trago comigo é ter me desfeito de um exemplar de 1952, em papel jornal do “Os miseráveis” de Victor Hugo. Ter a última edição, em dois volumes, da Cosac&Naif em nada me alivia. Aquele já não tinha capa, o papel amarelado, as folhas grossas; e a introdução e tradução de Afonso Schmidt ainda me vêm à lembrança a cada vez que falo nessa obra. Alguns cadernos já se soltando, agarrando-se bravamente à linha tão amarelada quanto suas páginas. Fui, dentro dessa argumentação, “convencido” a jogá-lo fora. É, fui covarde...
E as dedicatórias? Ah, já escrevi sobre elas aqui mesmo no blog, e continuo a adorá-las; um livro, um disco, ficam a meus olhos muito mais saborosos com elas. E isso não dá para transferir para formatos mais frios, muito embora já tenham existido “depoimentos” no finado e bem enterrado orkut. Nesses formatos novos, também não dá para colocar uma flor que se ganhou entre as páginas, para anos depois a redescobrir ali, seca e ainda com algum aroma, é, sei que se corre o risco de estragar a página, mas de qualquer maneira esse costume também já saiu de uso.
E é por isso que mesmo escrevendo aqui com carinho, e sentir cada comentário como um carinho recebido de volta, ainda assim são as letras impressas no papel as minha preferidas, por isso que apesar da demora na fila quando lancei o primeiro livro, fiz questão de escrever para cada um uma dedicatória diferente. E aos que foram ao lançamento, também um desenho, como uma forma de agradecer o carinho e atenção que tiveram.
E como o texto já se adianta, fico por aqui. Paradoxo: obrigado por ler, seja no micro, no celular ou em qualquer outro suporte!

Foto: Luiz Otávio Pereira