quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Santos Sepulcros


“(…) Todas as variedades de cruzes, anjos, bustos, medalhões, colunas, corações, âncoras,
figuras chorando, espadas, flâmulas, brasões, tochas viradas, vasos cobertos com panos funerários,
ampulhetas, corujas, caveiras, poliedros, livros da Vida abertos ou fechados, a foice do Tempo,
inscrições lacônicas ou lancinantes, humildes ou vaidosas, apelos de oraiporele ou porela
– Tudo recobrindo a mesma treva e o mesmo zero.”*

Pedro Nava


Quando, nos dias de finados, visitávamos as sepulturas de meus avós, eu, já desde cedo, era o incumbido de cortar as flores do jardim. Morávamos próximo de uma área já às entradas de uma reserva, à beira do morro onde, se adentrando um pouco, logo iniciaria a reserva dos Pilões. De lá, voltava com margaridas selvagens, amarelas, daquelas que se esparramam como trepadeiras, helicônias variadas, e ramas de manacás, mais difíceis de apanhar pela altura dos galhos… A mais das vezes o grande sucesso, quem o faziam eram as hortênsias do jardim de casa, os antúrios dos vasos de mamãe, que juntados às folhas de samambaias iam repousar e morrer também, elas, nas catacumbas de entes amados.

Chegando ao cemitério, primeiro avistávamos o lindo jazigo em granito, que era do padrinho de meu pai – aliás de sua família, pois aquele já não tinha nada, só as preces e velas que lhe eram acesas. Talvez fosse o mais vistoso dali, ele que tinha sido prefeito, e cuja lenda, por ter sido maçom, quem sabe, era que se transformava em lobisomem. Mas meu pai nunca falou muito dele; afinal, a mania de pobre dar filho a ricos para apadrinhar só distancia afilhados dos padrinhos, até pela quantidade de afilhados que os “remediados” têm. Já da madrinha, que não sei em que sepulcro foi parar, contava ele que era muito magra, alta, branca e feia, e que os irmãos dele o convenceram que seria uma bruxa; assim, todos os confeitos que ela lhe dava iam parar nas mãos de meus tios, já que meu pai morria de medo dela e seus possíveis feitiços e venenos.

A poucas quadras depois, chegávamos à residência oficial de meus avós, onde minha mãe abria os buquês, e em cruzes vivas transformava as flores sobre a cerâmica dos túmulos; acendíamos as velas, rezávamos procurando entrar em sintonia com eles, depois íamos ao cruzeiro rezar por outros parentes…

Quado criança, uma vez, nesse cemitério de Melo Viana, em Coronel Fabriciano, que não tinha muros e sim cerca, e poucas covas transformadas em sepulturas, o que deixava a terra, ali vermelhada, mais presente, para lembrar talvez que a esse pó retornaríamos – nesse cemitério, próximo ao cruzeiro onde fomos render homenagens aos parentes postos em sossego, morrentes em outros sítios, nos deparamos com aquela cena inusitada da vela que lacrimejava sangue. Uma pequena multidão já ao redor, a olhar e a comentar a novidade da pequena vela, comum, que chorava sangue. Pois bem, minha mãe foi lá ver, pegou um raminho, um pequeno galho seco, o que seja, e escarafunchando o pavio do lume, tirou dali os grãos de vermelhão; daquele mesmo que se misturava à cera para dar mais cor ao assoalho, e assim… c'est fini. Acabou-se a farsa, sabe-se lá provocada com que intuito mistificador. Finda a diversão, como o pequeno aglomerado, agora silencioso, que já dispersava, fomos embora dali, rezar noutra freguesia.



* NAVA, Pedro. Balão cativo. São Paulo: Companhia das Letras. 2012 p.70

Foto: Djair – Cemitério Municipal de Floriano – PI



6 comentários:

  1. Texto sempre muito agradável de ler. Estava sentindo sua falta. Você desapareceu hunf.

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    1. Crise criativa querida, vamos ver se consigo voltar às postagens semanais. Beijo grande

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  2. Rituais, ancestrais, santidades e mandingas, fiquei querendo mais! Esse pode ser o start de tantas outras histórias. Família que reza unida a enaltecer os falecidos em terreno santo, traz a certeza de muitos causos e peripécias. Abraço grande!

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    1. Obrigado querida, como bem o colocastes, a maioria dos "causos" vem de momentos em família, ou com amigos. Ah, os ancestrais... Quanto conhecimento, quanta história se vai com cada um deles.
      Abração saudoso

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  3. Ah Djair! Lobisomens, bruxas...saudades dos seus causos! Você faz falta, viu?! Grande beijo

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  4. Obrigado querida! Faltando você pra me sugerir temas pra escrever! :) Beijão

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