segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

O Punctum

Dentre as coisas belas que há no mundo, e das quais ainda quero ver, o Baobá é uma delas, aquela árvore que em si é quase um habitat, imponente, uma árvore já adulta, claro. Pequeno já tive a oportunidade de observar, em um sítio de um professor da Unesp, em Assis, interior do estado de São Paulo. Infelizmente era ainda um pequenino arbusto, sem imponência, que como se diz no “O pequeno príncipe” qualquer um pode dar cabo.

Fazia um trabalho de recortes de fotografias para uma matéria do mestrado, acaso minha favorita, “arte contemporânea”. Na foto, uma vila do interior da Zamézia, a segunda maior província moçambicana, próxima ao delta do rio Zambeze. O baobá ali estava presente, se sobrepunha ao casario construído a base galhos, às pessoas, ao resto da vegetação ressequida. No céu o branco de nuvens e um azul pálido, No chão, o solo marrom, e entre eles, fazendo a ligação, o baobá imponente. Maior que tudo isso, vila, céu, chão... Maior que a vida das pessoas a beira do casario…

Já pronto para recortar a foto, viro a página, e na continuação da matéria sobre as andanças à beira do índico o jornal trazia uma outra foto. Um homem, de costas para o observador, com um pincel em uma das mãos, e sobre um barco, emborcado, uma lata, do tipo galão de tinta. Possivelmente era algum tipo de verniz ou um selador qualquer.

A imagem sugere que ele passava o produto sobre uma madeira nova, pela cor crua, que teria colocado recentemente no barco, num conserto, em substituição a outro fragmento já retirado. As demais tábuas traziam múltiplos tons de madeiras descascadas: vermelho, azul, cinza, branco, um outro tom de azul, mais claro, amarelo… Descrevo-os por ordem de ocorrência no velho barco, uma espécia de canoa bastante grande, que por estar virada só permite conjecturas a respeito de sua tipologia. Impossível definir se o homem é jovem, adulto, ou idoso. A camisa quadriculada é grande para o corpo esguio, e o shorts comprido, mas isso é das modas por todo o canto. A vegetação atrás do barco sugere mangue, e a cor escura da terra é justamente do tom da terra desse bioma que não tenho ideia se ocorre no Indíco.

Não canso de olhar a foto, a atenção, o punctum, se divide entre o barco e o homem. Custo a perceber que está, em verdade, no pincel à mão daquele e na lata do selador (que é o que determinei que seria o produto). Já escolhi essa foto ao invés do baobá que remete ao desejo antigo, embora beleza, a plasticidade da primeira muito maior a tenha tornado a foto para chamada da matéria.

Por que? O que me faz escolher a segunda? E como numa sessão de psicanálise pego-me a pensar que é por minha relação com o trabalho, com o que representa para mim o trabalhar, o fazer. Ouço na memória Renato Russo e seus versos: “sem trabalho não sou nada, não sinto meu valor, não tenho identidade. Mas o que eu tenho é só um emprego, um salário miserável, eu tenho meu ofício que me cansa de verdade(…) Tem gente que não quer saber de trabalhar...”

É, ali está o punctum. A explicação para escolha, e assim nasce esse texto, resolvo escrever sobre isto. Com a mente cheia de lembranças de pessoas que tem os mais variados tipos de trabalho e o infinitas variações sobre suas relações com eles. Gente que conheci na Europa e que cursando um mestrado não tem inibição de trabalhar nos caixas de supermercado para não depender completamente dos pais. Gente como tio Onofre, vaqueiro de tia Margarida que ama seu trabalho, com as vacas, com o plantio do milho, o colher das abóboras, o tirar do leite. Isso enche-me de orgulho alheio. Também vem a memória, em oposição a esse orgulho alheio, gente que não trabalha e nada produz a não ser fezes, urina, e quando muito fumaça de cigarro. Gente que apenas ocupa um lugar onde deveria haver “ar”.


Foto: Djair - Coleção de recortes para o Atlas de imagens

sábado, 2 de dezembro de 2017

Desconhecer o Conhecido


Existem aulas que dão sono, outras, nem sequer isso. Apenas se olha para o relógio, que durante esse tempo diminui sua marcha. As mentes, essas divagam… Escrevem-se trabalhos de outras matérias, poesias, fazem-se desenhos, rabiscam-se letras, símbolos, garatujas as mais diversas, escrevem-se cartas, fazem contas e listas de compras. Redigem-se até textos para blogs que tratam de conversas fúteis e mundanas que não levam a nada.

Há aulas dadas com paixão e conhecimento, mas nenhuma didática. A verborragia sem pausas não dá tempo para digerir tanto. Cansa-se de tanto ouvir, sem que se possa realmente absorver, conflitar, questionar e gerar seu próprio ponto de vista, ou aceitar aquele apresentado. E se o aceitamos é mais por cansaço. Talvez um cansaço daquele mesmo tipo que faz o fiel crer no pastor, sem questionar posicionamentos, interpretações e dogmas.

Muitas vezes se detém títulos e conhecimento, mas já dizia Sócrates, segundo Platão. O mal de alguns homens é justamente o de se julgarem, que por serem expertos em alguma coisa específica se acharem conhecedores, sábios e capazes em todas as outras. Ter conhecimento sobre algo não quer dizer que se saiba transmitir. Ou pelo menos, não da melhor maneira, da forma a despertar interesse e fazer o outro querer buscar mais sobre aquilo, apaixonar-se.

Mas existem aulas de verdade, dadas com paixão e uma tal dinâmica que faz querer ouvir mais, onde se participa, se discute, discorda-se, diverte-se; e principalmente se absorve de uma maneira suave, prazerosa, viciante, tanto e tal que quando acaba, achamos que foi cedo, que queríamos mais um pouquinho, que aquilo devia ser discutido em uma mesa de bar, ou na mesa de casa mesmo, as com um copo de vinho a mesa, beliscando um queijinho, e fazendo o assunto render e ao esgotar-se já emendar noutro, e em outro, e…

E por que? Oras porque foi prazeroso ao ponto de a ligarmos com outros signos de prazer ao qual estamos acostumados. Porque quando há a pausa habitual, você mal se aguenta para fazer um comentário, pergunta, ou dizer à que aquilo lhe remeteu. Essas são as melhores, as que fazem valer a pena, que produzem ideias, geram conhecimento, que será transmitido depois num bate-papo, numa observação em um museu, sobre uma obra específica ou uma coleção, num café durante um bate-papo informal, numa troca de ideias durante um almoço, após ter sensações diversas ao assistir a um filme. O élan que nos transporta àquele conhecimento se dará espontâneo, inesperado, em qualquer lugar, pois já pertence a nossa experiência. São esses professores que ficarão e serão citados com carinho, com um sorriso nos olhos, nos lábios, no rosto, sendo lembrados por muito tempo. É esse conhecimento que ficará e será transmitido, pois é vivo.



Imagem: Sócrates e seus discípulos - Imagem da internet - disponível em: http://www.duniverso.com.br/wp-content/uploads/2016/02/socrates-filosofando-com-seus-discipulos.jpg